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quinta-feira, 26 de novembro de 2009

O Navio Negreiro - Antonio Frederico de Castro Alves

O poema de Antonio Frederico de Castro Alves, O Navio Negreiro, é um dos mais conhecidos da literatura brasileira. O poema descreve com imagens e expressões terríveis a situação dos africanos arrancados de suas terras, separados de suas famílias e tratados de forma desumana nos navios negreiros que os traziam para ser propriedade de senhores e trabalhar sob as ordens dos feitores em terras brasileiras.
O Navio Negreiro, com o subtítulo Tragédia no Mar, foi concluído pelo poeta em São Paulo, em 1868, quase vinte anos depois da promulgação da Lei Eusébio de Queiroz de 04 de setembro de 1850, que proibiu o tráfico de escravos, e foi declamado por ele a 07 de julho daquele ano, no Theatro São José, com grande êxito. Entretanto, a Lei Eusébio de Queiroz, como outras em nosso país, não foi cumprida integralmente, por nos faltarem os instrumentos fiscalizadores, levando, destarte, Castro Alves, com sua poesia de cunho social, contrariamente à temática da estética romântica, mais voltada ao egocentrismo, a se empenhar na denúncia da miséria a que eram submetidos os africanos na cruel travessia oceânica. Necessário se faz observar que, em média, menos da metade dos escravos embarcados nos navios negreiros completava com vida a dura viagem.
No poema, composto de molde a ser declamado às audiências, a cada situação retratada ocorrem as alternâncias métricas usadas pelo autor a fim de obter o efeito rítmico mais adequado. Assim, inicia-se com versos decassílabos que representam, de forma claramente condoreira, a imensidão do mar e seu reflexo na vastidão dos céus.
Composto em seis partes, com estruturas diferentes, demonstrando a liberdade formal do Romantismo, o poema se inicia com a supressão da vogal “e” inicial da palavra Estamos, grafada Stamos para que o poeta forme um verso decassílabo. Com este recurso, tipicamente romântico, a expressão suplanta o cuidado formal.

I
'Stamos em pleno mar... Doudo no espaço
Brinca o luar — dourada borboleta;
E as vagas após ele correm... cansam
Como turba de infantes inquieta.

O poeta abre o poema descrevendo o cenário, como a convidar o leitor a uma história que nele se desenrolará... Brinca o luar – dourada borboleta, a primeira metáfora surge como o barco a bailar por sobre as águas...

'Stamos em pleno mar... Do firmamento
Os astros saltam como espumas de ouro...
O mar em troca acende as ardentias,
— Constelações do líquido tesouro...
'Stamos em pleno mar... Dous infinitos
Ali se estreitam num abraço insano,
Azuis, dourados, plácidos, sublimes...
Qual dos dous é o céu? Qual o oceano?...

Temos, já no início do poema, a antítese, presente amiudadas vezes na obra castroalvina: céu e oceano...

'Stamos em pleno mar.. . Abrindo as velas
Ao quente arfar das virações marinhas,
Veleiro brigue corre à flor dos mares,
Como roçam na vaga as andorinhas...

O navio negreiro, o veleiro brigue... Embora o eu lírico ainda não saiba o que ele conduz, aparece no poema em meio à poética paisagem.

Donde vem? onde vai? Das naus errantes
Quem sabe o rumo se é tão grande o espaço?
Neste sahara os corcéis o pó levantam,
Galopam, voam, mas não deixam traço...

Surgem os questionamentos, de onde vem aquela embarcação, como a sugerir ao leitor uma aura de mistério a prepará-lo para os acontecimentos que advirão com o desenrolar do poema.

Bem feliz quem ali pode nest'hora
Sentir deste painel a majestade!
Embaixo — o mar em cima — o firmamento...
E no mar e no céu — a imensidade!

O jogo das antíteses evidencia-se, permeando as três primeiras partes do poema, onde a dedução pode levar o leitor, por enlevar-se com as grandiosidades de seu introito, a não permitir a mancha, o borrão a maculá-lo, na figura do navio negreiro, que se salienta a partir da quarta parte.

Oh! que doce harmonia traz-me a brisa!
Que música suave ao longe soa!
Meu Deus! Como é sublime um canto ardente
Pelas vagas sem fim boiando à toa!

Homens do mar! ó rudes marinheiros,
Tostados pelo sol dos quatro mundos!
Crianças que a procela acalentara
No berço destes pélagos profundos!

Esperai! Esperai! Deixai que eu beba
Esta selvagem, livre poesia
Orquestra — é o mar, que ruge pela proa,
E o vento, que nas cordas assobia...

Por que foges assim, barco ligeiro?
Por que foges do pávido poeta?
Oh! Quem me dera acompanhar-te a esteira
Que semelha no mar — doudo cometa!

Albatroz! Albatroz! águia do oceano,
Tu que dormes das nuvens entre as gazas,
Sacode as penas, Leviathan do espaço,
Albatroz! Albatroz! Dá-me estas asas.

A musa de Castro Alves erige-se na figura do albatroz, o maior pássaro oceânico, que chega a ter até 4 metros de envergadura de uma ponta a outra das asas. É o equivalente marinho do condor dos Andes, como ave altaneira a sobrevoar e observar, das grandes alturas, a mesquinhez do gênero humano, presente...

Na segunda parte do poema, composta em versos redondilhos maiores (heptassílabos), ao seguir o navio misterioso, pedindo emprestadas as asas do albatroz, o eu lírico escuta as canções vindas do mar. Ao se aproximar, na terceira parte, em versos alexandrinos, o eu lírico se horroriza com a “cena infame e vil”, descrita na quarta parte do poema, através de versos heterossílabos, alternando decassílabos e hexassílabos:

II

Que importa do nauta o berço,
Donde é filho, qual seu lar?
Ama a cadência do verso
Que lhe ensina o velho mar!

Cantai! que a morte é divina!
Resvala o brigue à bolina
Como golfinho veloz.
Presa ao mastro da mezena
Saudosa bandeira acena
As vagas que deixa após.

Do Espanhol as cantilenas
Requebradas de langor,
Lembram as moças morenas,
As andaluzas em flor!
Da Itália o filho indolente
Canta Veneza dormente,
— Terra de amor e traição,
Ou do golfo no regaço
Relembra os versos de Tasso,
Junto às lavas do vulcão!

O Inglês — marinheiro frio,
Que ao nascer no mar se achou,
(Porque a Inglaterra é um navio,
Que Deus na Mancha ancorou),
Rijo entoa pátrias glórias,
Lembrando, orgulhoso, histórias
De Nelson e de Aboukir.. .
O Francês — predestinado —
Canta os louros do passado
E os loureiros do porvir!

Os marinheiros Helenos,
Que a vaga jônia criou,
Belos piratas morenos
Do mar que Ulisses cortou,
Homens que Fídias talhara,
Vão cantando em noite clara
Versos que Homero gemeu ...
Nautas de todas as plagas,
Vós sabeis achar nas vagas
As melodias do céu! ...

O contraste dos marinheiros de toda parte é enaltecido, cantando suas glórias e seus heróis, que já pervagaram aquelas mesmas latitudes...

III

Desce do espaço imenso, ó águia do oceano!
Desce mais ... inda mais... não pode olhar humano
Como o teu mergulhar no brigue voador!
Mas que vejo eu aí... Que quadro d'amarguras!
É canto funeral! ... Que tétricas figuras! ...
Que cena infame e vil... Meu Deus! Meu Deus! Que horror!


IV

Era um sonho dantesco... o tombadilho
Que das luzernas avermelha o brilho.
Em sangue a se banhar.
Tinir de ferros... estalar de açoite...
Legiões de homens negros como a noite,
Horrendos a dançar...

Toda a carga emotiva do eu lírico vem à tona, em versos diretos, plenas de impactos semânticos, como espelhos a refletirem a indignação e estupefação que o autor quer passar ao leitor, descrevendo a cena dantesca que o navio encerra em seu bojo... “[...] Os sintagmas, progressivos, como que se projetam em espiral.”, segundo observa Godofredo Filho, na introdução à edição de 1959 de O Navio Negreiro, editado pela Livraria Progresso Editora, de Salvador.

Negras mulheres, suspendendo às tetas
Magras crianças, cujas bocas pretas
Rega o sangue das mães:
Outras moças, mas nuas e espantadas,
No turbilhão de espectros arrastadas,
Em ânsia e mágoa vãs!

E ri-se a orquestra irônica, estridente...
E da ronda fantástica a serpente
Faz doudas espirais ...
Se o velho arqueja, se no chão resvala,
Ouvem-se gritos... o chicote estala.
E voam mais e mais...

Presa nos elos de uma só cadeia,
A multidão faminta cambaleia,
E chora e dança ali!
Um de raiva delira, outro enlouquece,
Outro, que martírios embrutece,
Cantando, geme e ri!

No entanto o capitão manda a manobra,
E após fitando o céu que se desdobra,
Tão puro sobre o mar,
Diz do fumo entre os densos nevoeiros:
"Vibrai rijo o chicote, marinheiros!
Fazei-os mais dançar!..."

E ri-se a orquestra irônica, estridente. . .
E da ronda fantástica a serpente
Faz doudas espirais...
Qual um sonho dantesco as sombras voam!...
Gritos, ais, maldições, preces ressoam!
E ri-se Satanás!...

Na quinta parte, novamente em heptassílabos, o poeta faz um retrocesso temporal, descrevendo a vida livre dos africanos em sua terra. Cria, assim, um contraponto dramático com a situação dos escravos no navio. Na última estrofe Castro Alves retoma os decassílabos do início para protestar com veemência contra a crueldade do tráfico de escravos:

V

Senhor Deus dos desgraçados!
Dizei-me vós, Senhor Deus!
Se é loucura... se é verdade
Tanto horror perante os céus?!
Ó mar, por que não apagas
Co'a esponja de tuas vagas
De teu manto este borrão?...
Astros! noites! tempestades!
Rolai das imensidades!
Varrei os mares, tufão!

As consequências, mais que os motivos, evidenciam-se. O eu lírico procura, invocando as potestades da natureza, a consciência do leitor, a ser atingida com as imprecações plenas de revolta perante o que ele observa, de forma fervorosa, e o poema torna-se tão magistralmente arquitetado neste ponto que sua firmação dá-se peremptoriamente, com sua capacidade de emocionar e incitar.

Quem são estes desgraçados
Que não encontram em vós
Mais que o rir calmo da turba
Que excita a fúria do algoz?
Quem são? Se a estrela se cala,
Se a vaga à pressa resvala
Como um cúmplice fugaz,
Perante a noite confusa...
Dize-o tu, severa Musa,
Musa libérrima, audaz!...
São os filhos do deserto,
Onde a terra esposa a luz.
Onde vive em campo aberto
A tribo dos homens nus...
São os guerreiros ousados
Que com os tigres mosqueados
Combatem na solidão.
Ontem simples, fortes, bravos.
Hoje míseros escravos,
Sem luz, sem ar, sem razão. . .

São mulheres desgraçadas,
Como Agar o foi também.
Que sedentas, alquebradas,
De longe... bem longe vêm...
Trazendo com tíbios passos,
Filhos e algemas nos braços,
N'alma — lágrimas e fel...
Como Agar sofrendo tanto,
Que nem o leite de pranto
Têm que dar para Ismael.

Lá nas areias infindas,
Das palmeiras no país,
Nasceram crianças lindas,
Viveram moças gentis...
Passa um dia a caravana,
Quando a virgem na cabana
Cisma da noite nos véus...
... Adeus, ó choça do monte,
... Adeus, palmeiras da fonte!...
... Adeus, amores... adeus!...

Depois, o areal extenso...
Depois, o oceano de pó.
Depois no horizonte imenso
Desertos... desertos só...
E a fome, o cansaço, a sede...
Ai! quanto infeliz que cede,
E cai p'ra não mais s'erguer!...
Vaga um lugar na cadeia,
Mas o chacal sobre a areia
Acha um corpo que roer.

Ontem a Serra Leoa,
A guerra, a caça ao leão,
O sono dormido à toa
Sob as tendas d'amplidão!
Hoje... o porão negro, fundo,
Infecto, apertado, imundo,
Tendo a peste por jaguar...
E o sono sempre cortado
Pelo arranco de um finado,
E o baque de um corpo ao mar...

Ontem plena liberdade,
A vontade por poder...
Hoje... cúm'lo de maldade,
Nem são livres p'ra morrer. .
Prende-os a mesma corrente
— Férrea, lúgubre serpente —
Nas roscas da escravidão.
E assim zombando da morte,
Dança a lúgubre coorte
Ao som do açoute... Irrisão!...

Senhor Deus dos desgraçados!
Dizei-me vós, Senhor Deus,
Se eu deliro... ou se é verdade
Tanto horror perante os céus?!...
Ó mar, por que não apagas
Co'a esponja de tuas vagas
Do teu manto este borrão?
Astros! noites! tempestades!
Rolai das imensidades!
Varrei os mares, tufão! ...

Na sexta parte, em decassílabos camonianos e oitavas heroicas, o autor arremata o poema de forma apoteótica, conclamando os símbolos pátrios e os heróis da América à batalha contra o horror do nefando comércio de escravos:

VI

Existe um povo que a bandeira empresta
P'ra cobrir tanta infâmia e cobardia!...
E deixa-a transformar-se nessa festa
Em manto impuro de bacante fria!...
Meu Deus! meu Deus! mas que bandeira é esta,
Que impudente na gávea tripudia?
Silêncio. Musa... chora, e chora tanto
Que o pavilhão se lave no teu pranto! ...

Quão grande é a lamentação do eu lírico, sabedor que é a nossa bandeira, a cobrir de vergonha a pátria, a tremular no mastro do navio negreiro, impudente, infame e vil, a corroborar o subtítulo do poema, Tragédia no Mar... Conclama o poeta, num flamejante e apoteótico final, altaneiro como o albatroz marinho ou o condor andino, aos “heróis do Novo Mundo” a tomarem parte, como corresponsáveis na manutenção dos valores pátrios, a “fecharem as portas” a tanta vileza em nossos mares, tendo nossa bandeira por testemunha:

Auriverde pendão de minha terra,
Que a brisa do Brasil beija e balança,
Estandarte que a luz do sol encerra
E as promessas divinas da esperança...
Tu que, da liberdade após a guerra,
Foste hasteado dos heróis na lança
Antes te houvessem roto na batalha,
Que servires a um povo de mortalha!...

Fatalidade atroz que a mente esmaga!
Extingue nesta hora o brigue imundo
O trilho que Colombo abriu nas vagas,
Como um íris no pélago profundo!
Mas é infâmia demais! ... Da etérea plaga
Levantai-vos, heróis do Novo Mundo!
Andrada! Arranca esse pendão dos ares!
Colombo! Fecha a porta dos teus mares!

Escrito em São Paulo, a 18 de abril de 1868.


Ressoam estes fulgurantes e atemporais versos em nossas retinas psíquicas e espirituais, como a nos conclamar ainda a lutar pelas liberdades dos oprimidos modernos, que muitas vezes somos nós mesmos, nas ingentes pelejas diárias; a denunciar os abusos de toda sorte cometidos a outrem, entre eles a discriminação racial, a prostituição infantil e o trabalho escravo nas lavouras e minerações; a superar as indiferenças para com as necessidades alheias; a rentear com os mais fracos; a enfrentar o sistema selvagem da hodierna competição por emprego, estudo e bem estar, sem ferir nossos semelhantes; a valorizar os esforços dos que buscam um lugar ao sol; pois, sob vários aspectos, simbolicamente, os “tumbeiros”, ou “navios negreiros” ainda singram as águas de nossa sociedade, nos remetendo a meditar se será necessária uma nova Lei que proíba tal tráfico, ou que possa surgir uma nova Princesa Isabel a sancionar uma moderna “Abolição” da escravatura em nosso país, proclamando a igualdade definitivamente por estandarte a nortear os rumos de nossa convivência social.


NAVIO NEGREIRO CONTEMPORÂNEO

Composição Todo Camburão Tem Um Pouco de Navio Negreiro

A propósito da atualidade do poema O Navio Negreiro, que conta 141 anos neste ano de 2009, podemos examinar a letra da música do compositor Marcelo Yuka, do grupo de Rap e Hip Hop “O Rappa”, que apresenta, com sua linguagem moderna, a mesma temática usada pelo grande vate condoreiro, não obstante os diferentes contextos históricos, mudando a roupagem nos veículos da opressão: dos “tumbeiros”, citados por Castro Alves em seu poema, para os “camburões”; das “chibatas” às “macacas”:

Todo Camburão Tem Um Pouco De Navio Negreiro
O Rappa
Composição: Marcelo Yuka

Tudo começou quando a gente conversava
Naquela esquina alí
De frente àquela praça
Veio os homens
E nos pararam
Documento por favor
Então a gente apresentou
Mas eles não paravam
Qual é negão? qual é negão?
O que que tá pegando?
Qual é negão? qual é negão?

É mole de ver
Que em qualquer dura
O tempo passa mais lento pro negão
Quem segurava com força a chibata
Agora usa farda
Engatilha a macaca
Escolhe sempre o primeiro
Negro pra passar na revista
Pra passar na revista

Todo camburão tem um pouco de navio negreiro
Todo camburão tem um pouco de navio negreiro

É mole de ver
Que para o negro
Mesmo a aids possui hierarquia
Na áfrica a doença corre solta
E a imprensa mundial
Dispensa poucas linhas
Comparado, comparado
Ao que faz com qualquer
Figurinha do cinema
Comparado, comparado
Ao que faz com qualquer
Figurinha do cinema
Ou das colunas sociais

Todo camburão tem um pouco de navio negreiro
Todo camburão tem um pouco de navio negreiro

Na letra da música, além de registrar nas entrelinhas o desconforto de se viajar num camburão, como um navio negreiro sobre rodas; e a intolerância policial, usando os instrumentos de tortura, como os marinheiros-feitores de outrora usavam os chicotes, o autor deixou de forma patente a discriminação racial que os negros ainda sofrem no Brasil, sendo sumariamente suspeitos de qualquer tipo de ação, nociva ou não à Lei, que a força policial, coadjuvada pelos conceitos que a sociedade emite, pressupõe que os mesmos estejam a praticar.
O autor Marcelo Yuka expressa também que a doença AIDS, apesar do flagelo que representa, sobretudo na África, onde dizima milhares de vidas anualmente, oferece menor atração à imprensa mundial, que prefere repercutir o cotidiano das pessoas ligadas ao cinema e frequentadores das colunas sociais, além de sugerir que a sociedade é omissa perante fatos desta natureza. Omissão que grande parte da sociedade oitocentista também revelava frente ao tráfego e ao tráfico que os navios negreiros praticavam à época.

Seu nome em japonês

Seu nome em JAPONÊS:

A - ka
B - tu
C - mi
D - te
E - ku
F - lu
G - ji
H - ri
I - ki
J - zu
K - me
L - ta
M - rin
N - to
O - mo
P - no
Q - ke
R - shi
S - ari
T - chi
U - do
V - ru
W - mei
X - na
Y - fu
Z - zi

Nossa Língua Portuguesa

Nossa Língua Portuguesa

Esta é uma redação feita por uma aluna do curso de Letras, da UFPE
(Universidade Federal de Pernambuco - Recife) e que obteve vitória
em um concurso interno promovido pelo professor titular da cadeira
de Gramática Portuguesa.





"Era a terceira vez que aquele substantivo
e aquele artigo se encontravam no elevador.
Um substantivo masculino, com um aspecto plural,
com alguns anos bem vividos pelas preposições da vida.

E o artigo era bem definido, feminino, singular:
era ainda novinha,
mas com um maravilhoso predicado nominal.
Era ingênua, silábica, um pouco átona,
até ao contrário dele:
um sujeito oculto, com todos os vícios de linguagem,
fanáticos por leituras e filmes ortográficos.

O substantivo gostou dessa situação:
os dois sozinhos, num lugar sem ninguém ver e ouvir.
E sem perder essa oportunidade,
começou a se insinuar, a perguntar, a conversar.
O artigo feminino deixou as reticências de lado,
e permitiu esse pequeno índice.

De repente, o elevador pára, só com os dois lá dentro:
ótimo, pensou o substantivo,
mais um bom motivo para provocar alguns sinônimos.
Pouco tempo depois, já estavam bem entre parênteses,
quando o elevador recomeça a se movimentar:
só que em vez de descer,
sobe e pára justamente no andar do substantivo.

Ele usou de toda a sua flexão verbal,
e entrou com ela em seu aposto.
Ligou o fonema,
e ficaram alguns instantes em silêncio, ouvindo uma
fonética clássica, bem suave e gostosa.

Prepararam uma sintaxe dupla para ele
e um hiato com gelo para ela.
Ficaram conversando, sentados num vocativo,
quando ele começou outra vez a se insinuar.
Ela foi deixando,
ele foi usando seu forte adjunto adverbial,
e rapidamente chegaram a um imperativo,
todos os vocábulos diziam que iriam terminar
num transitivo direto.

Começaram a se aproximar,
ela tremendo de vocabulário,
e ele sentindo seu ditongo crescente:
se abraçaram, numa pontuação tão minúscula,
que nem um período simples passaria entre os dois.
Estavam nessa ênclise quando
ela confessou que ainda era vírgula
ele não perdeu o ritmo
e sugeriu uma ou outra soletrada em seu apóstrofo.

É claro que ela se deixou levar por essas palavras,
estava totalmente oxítona às vontades dele,
e foram para o comum de dois gêneros.
Ela totalmente voz passiva, ele voz ativa.
Entre beijos, carícias, parônimos e substantivos,
ele foi avançando cada vez mais:
ficaram uns minutos nessa próclise, e ele,
com todo o seu predicativo do objeto,
ia tomando conta.

Estavam na posição de primeira
e segunda pessoas do singular,
ela era um perfeito agente da passiva,
ele todo paroxítono,
sentindo o pronome do seu grande travessão
forçando aquele hífen ainda singular.
Nisso a porta abriu repentinamente.

Era o verbo auxiliar do edifício.
Ele tinha percebido tudo,
e entrou dando conjunções e adjetivos nos dois,
que se encolheram gramaticalmente,
cheios de preposições, locuções e exclamativas.

Mas ao ver aquele corpo jovem,
numa acentuação tônica, ou melhor, subtônica,
o verbo auxiliar diminuiu seus advérbios
e declarou o seu particípio na história.
Os dois se olharam,
e viram que isso era melhor do que
uma metáfora por todo o edifício.

O verbo auxiliar se entusiasmou,
e mostrou o seu adjunto adnominal.
Que loucura, minha gente.
Aquilo não era nem comparativo:
era um superlativo absoluto.
Foi se aproximando dos dois,
com aquela coisa maiúscula,
com aquele predicativo do sujeito
apontado para seus objetos.

Foi chegando cada vez mais perto,
comparando o ditongo do substantivo ao seu tritongo,
propondo claramente uma mesóclise-a-trois.
Só que as condições eram estas:
enquanto abusava de um ditongo nasal,
penetraria ao gerúndio do substantivo,
e culminaria com um complemento verbal no artigo feminino.

O substantivo, vendo que poderia se transformar
num artigo indefinido depois dessa,
pensando em seu infinitivo,
resolveu colocar um ponto final na história:
agarrou o verbo auxiliar pelo seu conectivo,
jogou-o pela janela e voltou ao seu trema,
cada vez mais fiel à língua portuguesa,
com o artigo feminino
colocado em conjunção coordenativa conclusiva."







Mandinha Gobbo ;-)
www.fotolog.net/mandinha_rj
MSN: amandagobbo@hotmail.com

Metrificação

Metro é a medida do verso. O estudo do metro chama-se metrificação e escansão é a contagem dos sons dos versos. As sílabas métricas, ou poéticas, diferem das sílabas gramaticais em alguns aspectos. Lembraremos alguns preceitos a esse respeito: contam-se as sílabas ou sons até a tônica da última palavra de um verso. Exemplo:
A-mo-te,ó-cruz,no-vér-ti-ce-fir-ma/da = 10 sílabas
De es-plên-di-das-i-gre/jas = 6 sílabas
Mi-nha-mu-lher-ex-pi-rou = 7 sílabas
E as-bre/ves = 2 sílabas
Vir-gem-das-do/res = 4 sílabas
Tipos de verso
A um número de sílabas métricas em determinado verso podem ser atribuídos nomes:
Dodecassílabo: 12 sílabas
Ins | pi | ra | do^a | pen | sar | em | teu | per | fil | di | vi | (no)
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12
Alexandrino – Dodecassílabo com tônica na sexta e na décima segunda sílaba, formando dois hemistíquios.
Decassílabo: 10 sílabas (muito comum em sonetos e presente em Os Lusíadas de Luís de Camões).
Não | tens | que | ças | da | que | lea | mor | ar | den | (te)
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10
Heroico – Decassílabo com sílabas tônicas nas posições 6 e 10
Sáfico – Decassílabo com sílabas tônicas nas posições 4, 8 e 10
Martelo – Decassílabo Heróico com tônicas nas posições 3, 6 e 10
Gaita Galega ou Moinheira – Decassílabo com tônicas nas posições 4, 7 e 10
Redondilha maior ou heptassílabo: 7 sílabas
Se | nho | ra, | par | tem | tão | tris | (tes)
1 2 3 4 5 6 7
Redondilha menor: 5 sílabas
Tan | tos | gri | tos | rou | (cos)
1 2 3 4 5
A lista geral de designações é a seguinte:
1. Monossílabo : 1 sílaba
2. Dissílabo : 2 sílabas
3. Trissílabo : 3 sílabas
4. Tetrassílabo: 4 sílabas
5. Pentassílabo ou Redondilha Menor: 5 sílabas
6. Hexassílabo ou Heróico Quebrado: 6 sílabas
7. Heptassílabo ou Redondilha Maior: 7 sílabas
8. Octossílabo: 8 sílabas
9. Eneassílabo: 9 sílabas
10. Decassílabo: 10 sílabas
11. Hendecassílabo: 11 sílabas
12. Dodecassílabo ou alexandrino: 12 sílabas poéticas.

O rico vocabulário de Ruy

Diz a lenda que Ruy Barbosa, um dia ao chegar em casa,
ouviu um barulho estranho vindo do seu quintal.
Chegando lá, constatou haver um ladrão tentando levar seus
patos de criação.
Aproximou-se vagarosamente do indivíduo e,
surpreendendo-o ao tentar pular o muro com seus amados
patos, disse-lhe:
- Oh, bucéfalo anácrono! Não o interpelo pelo valor intrínseco dos bípedes palmípedes, mas sim pelo ato vil e sorrateiro de profanares o recôndito da minha habitação, levando meus ovíparos à sorrelfa e à socapa.. Se fazes isso por necessidade, transijo; mas se é para zombares da minha elevada prosopopeia de cidadão digno e honrado, dar-te-ei com minha bengala fosfórica bem no alto da tua sinagoga, e o farei com tal ímpeto que te reduzirei à quinquagésima potência que o vulgo denomina nada.
E o ladrão, completamente confuso, diz:
- Dotô, é prá levá ou prá deixá os pato?

O Espelho - Machado de Assis

LITERATURA BRASILEIRA
Textos literários em meio eletrônico
O espelho, de Machado de Assis
________________________________________
Obra Completa, de Machado de Assis, vol. II,
Nova Aguilar, Rio de Janeiro, 1994.



Esboço de uma nova teoria da alma humana

Quatro ou cinco cavalheiros debatiam, uma noite, várias questões de alta transcendência, sem que a disparidade dos votos
trouxesse a menor alteração aos espíritos. A casa ficava no morro de Santa Teresa, a sala era pequena, alumiada a velas, cuja luz fundia-se misteriosamente com o luar que vinha de fora. Entre a cidade, com as suas agitações e aventuras, e o céu, em que as estrelas pestanejavam, através de uma atmosfera límpida e sossegada, estavam os nossos quatro ou cinco investigadores de
coisas metafísicas, resolvendo amigavelmente os mais árduos problemas do universo.
Por que quatro ou cinco? Rigorosamente eram quatro os que falavam; mas, além deles, havia na sala um quinto personagem,
calado, pensando, cochilando, cuja espórtula no debate não passava de um ou outro resmungo de aprovação. Esse homem tinha a mesma idade dos companheiros, entre quarenta e cinqüenta anos, era provinciano, capitalista, inteligente, não sem instrução, e, ao que parece, astuto e cáustico. Não discutia nunca; e defendia-se da abstenção com um paradoxo, dizendo que a discussão é a forma polida do instinto batalhador, que jaz no homem, como uma herança bestial; e acrescentava que os serafins e os querubins não controvertiam nada, e, aliás, eram a perfeição espiritual e eterna. Como desse esta mesma resposta naquela noite, contestou-lha um dos presentes, e desafiou-o a demonstrar o que dizia, se era capaz. Jacobina (assim se chamava ele) refletiu um instante, e respondeu:
- Pensando bem, talvez o senhor tenha razão.
Vai senão quando, no meio da noite, sucedeu que este casmurro usou da palavra, e não dois ou três minutos, mas trinta ou
quarenta. A conversa, em seus meandros, veio a cair na natureza da alma, ponto que dividiu radicalmente os quatro amigos.
Cada cabeça, cada sentença; não só o acordo, mas a mesma discussão tornou-se difícil, senão impossível, pela multiplicidade
das questões que se deduziram do tronco principal e um pouco, talvez, pela inconsistência dos pareceres. Um dos
argumentadores pediu ao Jacobina alguma opinião, - uma conjetura, ao menos.
- Nem conjetura, nem opinião, redargüiu ele; uma ou outra pode dar lugar a dissentimento, e, como sabem, eu não discuto. Mas, se querem ouvir-me calados, posso contar-lhes um caso de minha vida, em que ressalta a mais clara demonstração acerca da matéria de que se trata. Em primeiro lugar, não há uma só alma, há duas...
- Duas?
- Nada menos de duas almas. Cada criatura humana traz duas almas consigo: uma que olha de dentro para fora, outra que olha
de fora para entro... Espantem-se à vontade, podem ficar de boca aberta, dar de ombros, tudo; não admito réplica. Se me
replicarem, acabo o charuto e vou dormir. A alma exterior pode ser um espírito, um fluido, um homem, muitos homens, um
objeto, uma operação. Há casos, por exemplo, em que um simples botão de camisa é a alma exterior de uma pessoa; - e assim também a polca, o voltarete, um livro, uma máquina, um par de botas, uma cavatina, um tambor, etc. Está claro que o ofício dessa segunda alma é transmitir a vida, como a primeira; as duas completam o homem, que é, metafisicamente falando, uma laranja. Quem perde uma das metades, perde naturalmente metade da existência; e casos há, não raros, em que a perda da alma exterior implica a da existência inteira. Shylock, por exemplo. A alma exterior aquele judeu eram os seus ducados; perdê-los equivalia a morrer. "Nunca mais verei o meu ouro, diz ele a Tubal; é um punhal que me enterras no coração." Vejam bem esta frase; a perda dos ducados, alma exterior, era a morte para ele. Agora, é preciso saber que a alma exterior não é sempre a mesma...
- Não?
- Não, senhor; muda de natureza e de estado. Não aludo a certas almas absorventes, como a pátria, com a qual disse o Camões que morria, e o poder, que foi a alma exterior de César e de Cromwell. São almas enérgicas e exclusivas; mas há outras, embora enérgicas, de natureza mudável. Há cavalheiros, por exemplo, cuja alma exterior, nos primeiros anos, foi um chocalho ou um cavalinho de pau, e mais tarde uma provedoria de irmandade, suponhamos. Pela minha parte, conheço uma senhora, - na verdade, gentilíssima, - que muda de alma exterior cinco, seis vezes por ano. Durante a estação lírica é a ópera; cessando a estação, a alma exterior substitui-se por outra: um concerto, um baile do Cassino, a rua do Ouvidor, Petrópolis...
- Perdão; essa senhora quem é?
- Essa senhora é parenta do diabo, e tem o mesmo nome; chama-se Legião... E assim outros mais casos. Eu mesmo tenho
experimentado dessas trocas. Não as relato, porque iria longe; restrinjo-me ao episódio de que lhes falei. Um episódio dos meus vinte e cinco anos...
Os quatro companheiros, ansiosos de ouvir o caso prometido, esqueceram a controvérsia. Santa curiosidade! tu não és só a
alma da civilização, és também o pomo da concórdia, fruta divina, de outro sabor que não aquele pomo da mitologia. A sala, até há pouco ruidosa de física e metafísica, é agora um mar morto; todos os olhos estão no Jacobina, que conserta a ponta do
charuto, recolhendo as memórias. Eis aqui como ele começou a narração:
- Tinha vinte e cinco anos, era pobre, e acabava de ser nomeado alferes da Guarda Nacional. Não imaginam o acontecimento
que isto foi em nossa casa. Minha mãe ficou tão orgulhosa! tão contente! Chamava-me o seu alferes. Primos e tios, foi tudo uma alegria sincera e pura. Na vila, note-se bem, houve alguns despeitados; choro e ranger de dentes, como na Escritura; e o motivo não foi outro senão que o posto tinha muitos candidatos e que esses perderam. Suponho também que uma parte do desgosto foi inteiramente gratuita: nasceu da simples distinção. Lembra-me de alguns rapazes, que se davam comigo, e passaram a olhar-me de revés, durante algum tempo. Em compensação, tive muitas pessoas que ficaram satisfeitas com a nomeação; e a prova é que todo o fardamento me foi dado por amigos... Vai então uma das minhas tias, D. Marcolina, viúva do Capitão Peçanha, que morava a muitas léguas da vila, num sítio escuso e solitário, desejou ver-me, e pediu que fosse ter com ela e levasse a farda. Fui, acompanhado de um pajem, que daí a dias tornou à vila, porque a tia Marcolina, apenas me pilhou no sítio, escreveu a minha mãe dizendo que não me soltava antes de um mês, pelo menos. E abraçava-me! Chamava-me também o seu alferes. Achava-me um rapagão bonito. Como era um tanto patusca, chegou a confessar que tinha inveja da moça que houvesse de ser minha mulher. Jurava que em toda a província não havia outro que me pusesse o pé adiante. E sempre alferes; era alferes para cá, alferes para lá, alferes a toda a hora. Eu pedia-lhe que me chamasse Joãozinho, como dantes; e ela abanava a cabeça, bradando que não, que era o "senhor alferes". Um cunhado dela, irmão do finado Peçanha, que ali morava, não me chamava de outra maneira. Era o "senhor alferes", não por gracejo, mas a sério, e à vista dos escravos, que naturalmente foram pelo mesmo caminho. Na mesa tinha eu o melhor lugar, e era o primeiro servido. Não imaginam. Se lhes disser que o entusiasmo da tia Marcolina chegou ao ponto de mandar pôr no meu quarto um grande espelho, obra rica e magnífica, que destoava do resto da casa, cuja mobília era modesta e simples... Era um espelho que lhe dera a madrinha, e que esta herdara da mãe, que o comprara a uma das fidalgas vindas em 1808 com a corte de D. João VI. Não sei o que havia nisso de verdade; era a tradição. O espelho estava naturalmente muito velho; mas via-se-lhe ainda o ouro, comido em parte pelo tempo, uns delfins esculpidos nos ângulos superiores da moldura, uns enfeites de madrepérola e outros caprichos do artista. Tudo velho, mas bom...
- Espelho grande?
- Grande. E foi, como digo, uma enorme fineza, porque o espelho estava na sala; era a melhor peça da casa. Mas não houve
forças que a demovessem do propósito; respondia que não fazia falta, que era só por algumas semanas, e finalmente que o
"senhor alferes" merecia muito mais. O certo é que todas essas coisas, carinhos, atenções, obséquios, fizeram em mim uma
transformação, que o natural sentimento da mocidade ajudou e completou. Imaginam, creio eu?
- Não.
- O alferes eliminou o homem. Durante alguns dias as duas naturezas equilibraram-se; mas não tardou que a primitiva cedesse à outra; ficou-me uma parte mínima de humanidade. Aconteceu então que a alma exterior, que era dantes o sol, o ar, o campo, os olhos das moças, mudou de natureza, e passou a ser a cortesia e os rapapés da casa, tudo o que me falava do posto, nada do que me falava do homem. A única parte do cidadão que ficou comigo foi aquela que entendia com o exercício da patente; a outra dispersou-se no ar e no passado. Custa-lhes acreditar, não?
- Custa-me até entender, respondeu um dos ouvintes.
- Vai entender. Os fatos explicarão melhor os sentimentos: os fatos são tudo. A melhor definição do amor não vale um beijo de moça namorada; e, se bem me lembro, um filósofo antigo demonstrou o movimento andando. Vamos aos fatos. Vamos ver
como, ao tempo em que a consciência do homem se obliterava, a do alferes tornava-se viva e intensa. As dores humanas, as
alegrias humanas, se eram só isso, mal obtinham de mim uma compaixão apática ou um sorriso de favor. No fim de três semanas, era outro, totalmente outro. Era exclusivamente alferes. Ora, um dia recebeu a tia Marcolina uma notícia grave; uma de suas filhas, casada com um lavrador residente dali a cinco léguas, estava mal e à morte. Adeus, sobrinho! adeus, alferes! Era mãe extremosa, armou logo uma viagem, pediu ao cunhado que fosse com ela, e a mim que tomasse conta do sítio. Creio que, se não fosse a aflição, disporia o contrário; deixaria o cunhado e iria comigo. Mas o certo é que fiquei só, com os poucos escravos da casa. Confesso-lhes que desde logo senti uma grande opressão, alguma coisa semelhante ao efeito de quatro paredes de um cárcere, subitamente levantadas em torno de mim. Era a alma exterior que se reduzia; estava agora limitada a alguns espíritos boçais. O alferes continuava a dominar em mim, embora a vida fosse menos intensa, e a consciência mais débil. Os escravos punham uma nota de humildade nas suas cortesias, que de certa maneira compensava a afeição dos parentes e a intimidade doméstica interrompida. Notei mesmo, naquela noite, que eles redobravam de respeito, de alegria, de protestos. Nhô alferes, de minuto a minuto; nhô alferes é muito bonito; nhô alferes há de ser coronel; nhô alferes há de casar com moça bonita, filha de general; um concerto de louvores e profecias, que me deixou extático. Ah ! pérfidos! mal podia eu suspeitar a intenção secreta dos malvados.
- Matá-lo?
- Antes assim fosse.
- Coisa pior?
- Ouçam-me. Na manhã seguinte achei-me só. Os velhacos, seduzidos por outros, ou de movimento próprio, tinham resolvido
fugir durante a noite; e assim fizeram. Achei-me só, sem mais ninguém, entre quatro paredes, diante do terreiro deserto e da roça
abandonada. Nenhum fôlego humano. Corri a casa toda, a senzala, tudo; ninguém, um molequinho que fosse. Galos e galinhas
tão-somente, um par de mulas, que filosofavam a vida, sacudindo as moscas, e três bois. Os mesmos cães foram levados pelos
escravos. Nenhum ente humano. Parece-lhes que isto era melhor do que ter morrido? era pior. Não por medo; juro-lhes que não tinha medo; era um pouco atrevidinho, tanto que não senti nada, durante as primeiras horas. Fiquei triste por causa do dano causado à tia Marcolina; fiquei também um pouco perplexo, não sabendo se devia ir ter com ela, para lhe dar a triste notícia, ou ficar tomando conta da casa. Adotei o segundo alvitre, para não desamparar a casa, e porque, se a minha prima enferma estava mal, eu ia somente aumentar a dor da mãe, sem remédio nenhum; finalmente, esperei que o irmão do tio Peçanha voltasse naquele dia ou no outro, visto que tinha saído havia já trinta e seis horas. Mas a manhã passou sem vestígio dele; à tarde comecei a sentir a sensação como de pessoa que houvesse perdido toda a ação nervosa, e não tivesse consciência da ação muscular. O irmão do tio Peçanha não voltou nesse dia, nem no outro, nem em toda aquela semana. Minha solidão tomou proporções enormes. Nunca os dias foram mais compridos, nunca o sol abrasou a terra com uma obstinação mais cansativa. As horas batiam de século a século no velho relógio da sala, cuja pêndula tic-tac, tic-tac, feria-me a alma interior, como um piparote contínuo da eternidade. Quando, muitos anos depois, li uma poesia americana, creio que de Longfellow, e topei este famoso estribilho: Never, for ever! - For ever, never! confesso-lhes que tive um calafrio: recordei-me daqueles dias medonhos. Era justamente assim que fazia o relógio da tia Marcolina: - Never, for ever!- For ever, never! Não eram golpes de pêndula, era um diálogo do abismo, um cochicho do nada. E então de noite! Não que a noite fosse mais silenciosa. O silêncio era o mesmo que de dia. Mas a noite era a sombra, era a solidão ainda mais estreita, ou mais larga. Tic-tac, tic-tac. Ninguém, nas salas, na varanda, nos corredores, no terreiro, ninguém em parte nenhuma... Riem-se?
- Sim, parece que tinha um pouco de medo.
- Oh! fora bom se eu pudesse ter medo! Viveria. Mas o característico daquela situação é que eu nem sequer podia ter medo,
isto é, o medo vulgarmente entendido. Tinha uma sensação inexplicável. Era como um defunto andando, um sonâmbulo, um
boneco mecânico. Dormindo, era outra coisa. O sono dava-me alívio, não pela razão comum de ser irmão da morte, mas por
outra. Acho que posso explicar assim esse fenômeno: - o sono, eliminando a necessidade de uma alma exterior, deixava atuar a alma interior. Nos sonhos, fardava-me orgulhosamente, no meio da família e dos amigos, que me elogiavam o garbo, que me
chamavam alferes; vinha um amigo de nossa casa, e prometia-me o posto de tenente, outro o de capitão ou major; e tudo isso
fazia-me viver. Mas quando acordava, dia claro, esvaía-se com o sono a consciência do meu ser novo e único -porque a alma
interior perdia a ação exclusiva, e ficava dependente da outra, que teimava em não tornar... Não tornava. Eu saía fora, a um lado e outro, a ver se descobria algum sinal de regresso. Soeur Anne, soeur Anne, ne vois-tu rien venir? Nada, coisa nenhuma; tal qual como na lenda francesa. Nada mais do que a poeira da estrada e o capinzal dos morros. Voltava para casa, nervoso, desesperado, estirava-me no canapé da sala. Tic-tac, tic-tac. Levantava-me, passeava, tamborilava nos vidros das janelas, assobiava. Em certa ocasião lembrei-me de escrever alguma coisa, um artigo político, um romance, uma ode; não escolhi nada definitivamente; sentei-me e tracei no papel algumas palavras e frases soltas, para intercalar no estilo. Mas o estilo, como tia Marcolina, deixava-se estar. Soeur Anne, soeur Anne... Coisa nenhuma. Quando muito via negrejar a tinta e alvejar o papel.
- Mas não comia?
- Comia mal, frutas, farinha, conservas, algumas raízes tostadas ao fogo, mas suportaria tudo alegremente, se não fora a terrível
situação moral em que me achava. Recitava versos, discursos, trechos latinos, liras de Gonzaga, oitavas de Camões, décimas,
uma antologia em trinta volumes. As vezes fazia ginástica; outra dava beliscões nas pernas; mas o efeito era só uma sensação
física de dor ou de cansaço, e mais nada. Tudo silêncio, um silêncio vasto, enorme, infinito, apenas sublinhado pelo eterno tic-tac da pêndula. Tic-tac, tic-tac...
- Na verdade, era de enlouquecer.
- Vão ouvir coisa pior. Convém dizer-lhes que, desde que ficara só, não olhara uma só vez para o espelho. Não era abstenção
deliberada, não tinha motivo; era um impulso inconsciente, um receio de achar-me um e dois, ao mesmo tempo, naquela casa
solitária; e se tal explicação é verdadeira, nada prova melhor a contradição humana, porque no fim de oito dias deu-me na veneta de olhar para o espelho com o fim justamente de achar-me dois. Olhei e recuei. O próprio vidro parecia conjurado com o resto do universo; não me estampou a figura nítida e inteira, mas vaga, esfumada, difusa, sombra de sombra. A realidade das leis físicas não permite negar que o espelho reproduziu-me textualmente, com os mesmos contornos e feições; assim devia ter sido. Mas tal não foi a minha sensação. Então tive medo; atribuí o fenômeno à excitação nervosa em que andava; receei ficar mais tempo, e enlouquecer. - Vou-me embora, disse comigo. E levantei o braço com gesto de mau humor, e ao mesmo tempo de decisão, olhando para o vidro; o gesto lá estava, mas disperso, esgaçado, mutilado... Entrei a vestir-me, murmurando comigo, tossindo sem tosse, sacudindo a roupa com estrépito, afligindo-me a frio com os botões, para dizer alguma coisa. De quando em quando, olhava furtivamente para o espelho; a imagem era a mesma difusão de linhas, a mesma decomposição de contornos... Continuei a vestir-me. Subitamente por uma inspiração inexplicável, por um impulso sem cálculo, lembrou-me... Se forem capazes de adivinhar qual foi a minha idéia...
- Diga.
- Estava a olhar para o vidro, com uma persistência de desesperado, contemplando as próprias feições derramadas e
inacabadas, uma nuvem de linhas soltas, informes, quando tive o pensamento... Não, não são capazes de adivinhar.
- Mas, diga, diga.
- Lembrou-me vestir a farda de alferes. Vesti-a, aprontei-me de todo; e, como estava defronte do espelho, levantei os olhos, e...não lhes digo nada; o vidro reproduziu então a figura integral; nenhuma linha de menos, nenhum contorno diverso; era eu mesmo, o alferes, que achava, enfim, a alma exterior. Essa alma ausente com a dona do sítio, dispersa e fugida com os escravos, ei-la recolhida no espelho. Imaginai um homem que, pouco a pouco, emerge de um letargo, abre os olhos sem ver, depois começa a ver, distingue as pessoas dos objetos, mas não conhece individualmente uns nem outros; enfim, sabe que este é Fulano, aquele é Sicrano; aqui está uma cadeira, ali um sofá. Tudo volta ao que era antes do sono. Assim foi comigo. Olhava para o espelho, ia de um lado para outro, recuava, gesticulava, sorria e o vidro exprimia tudo. Não era mais um autômato, era um ente animado. Daí em diante, fui outro. Cada dia, a uma certa hora, vestia-me de alferes, e sentava-me diante do espelho, lendo olhando, meditando; no fim de duas, três horas, despia-me outra vez. Com este regime pude atravessar mais seis dias de solidão sem os sentir...
Quando os outros voltaram a si, o narrador tinha descido as escadas.

Texto mais antigo em língua portuguesa

TEXTO MAIS ANTIGO EM LÍNGUA PORTUGUESA

O documento mais antigo escrito em língua portuguesa já encontrado é o poema de amor, conhecido por "Cantiga da Ribeirinha" ou "Cantiga da Guarvaya". Os estudiosos datam-no de 1189 ou 1198, razão por que, oficialmente, considera-se o português surgido no século XII. O poema, de autoria de Paio Soares de Taveirós, foi dedicado a D. Maria Paes Ribeiro - apelidada "A Ribeirinha", amante do rei D. Sancho I - e pertence a uma coleção de textos arcaicos denominados Cancioneiro da Ajuda. Ei-lo:
No mundo non me sei parelha1,
mentre2 me for' como me vay,
ca3 já moiro por vos - e ay!
mia senhor4 branca e vermelha,
queredes que vos retraya5
quando vus eu vi en saya!
Mao dia me levantei,
que vus enton non vi fea6!
E, mia senhor, des aquel di'ay!
me foi a mi muyn mal,
e vos, filha de don Paay
Moniz, e ben vus semelha7
d'aver eu por vos guarvaya8,
pois eu, mia senhor, d'alfaya
nunca de vos ouve nen ei
valia d'űa correa.

1 parelha = igual, semelhante.
2 mentre = enquanto, entrementes. Essa forma arcaizou-se, isto é, caiu em desuso, mas o espanhol manteve a forma antiga mientras.
3 ca = pois, porque. Enquanto ca também se arcaizou, o francês manteve car até hoje, com o mesmo significado.
4 senhor = senhora. Por essa época, usava-se na poesia a palavra "senhor" referindo-se indistintamente ao homem e à mulher.
5 retraya = retrate, evoque.
6 que vus enton non vi fea. Aqui o autor valeu-se de uma figura de linguagem - mais exatamente, figura de pensamento - conhecida por litote, que consiste na atenuação de uma idéia através da negação do seu oposto. Dessa forma, "não vi feia" equivale a "vi bonita".
7 semelha = parece.
8 guarvaya = manto escarlate próprio dos reis.


Observe que, enquanto muita coisa mudou, várias palavras são exatamente as mesmas, na forma e no significado, há mais de 800 anos.


Disponível em:
http://www.paulohernandes.pro.br/vocesabia/001/vcsabia013.html
Acesso em: 13 mar 2009

Um Livro

"Um livro aberto é um cérebro que fala; fechado, um amigo que espera;
esquecido, uma alma que perdoa; destruído, um coração que chora."

Rabindranath Tagore

VIDRO

VIDRO

I

Titote tem uma personalidade incrível. Daquelas que se pode afirmar cunhada na forja da experiência que só uma vida prenhe de labutas proporciona.
Morador da periferia da cidade grande, em um bairro violento, que tem presença constante nas páginas de noticiário policial dos jornais. Vive só, é um solteirão convicto, e, diversamente dos seus poucos conhecidos, leva uma vida caseira no que restou de um antigo cortiço de meia-água, reformado com suas próprias mãos, contando com parca, mas bem-vinda ajuda. Olha com altaneiro desprezo o mundo a sua volta, embora o inconfessável medo deste extramuros o faça levar esta vida quase de claustro. Impregna obsessivamente tudo que o cerca em sua modesta morada com seus arranjos, como no jardim bem cuidado, (coisa rara por lá), no seu jeito de lidar com os gatos que cria, com os quais trava diálogos ininteligíveis, como a exteriorizar o turbilhão de sensações que represa em seu íntimo, num afã de enxergar nos bichanos algo indefinível.
Mimetiza-se em seu habitat com os objetos, quinquilharias que traz e que recolhe ao longo de sua caminhada para o local de trabalho, uma serralheria, onde, com a pele crestada pelo sol e pela rude batalha do dia-a-dia, verga o ferro, usa o torno, une suas partes com o maçarico, transformando-o em grades e cercas para proteger os cidadãos de bem contra o que sua sociedade exclui.
Tão é seu único amigo, o conheceu na oficina, tem compleição física avantajada, quase rude, mas possui uma sensibilidade que se revela através do olhar tranquilo e sereno. É dado a ilações filosóficas, mesmo tendo cursado apenas o ensino médio. No trajeto das entregas e montagens que faziam, de vez em quando sobrava um tempinho para trocarem idéias sobre a vida, com seus problemas e filigranas de todos os matizes, sobretudo acerca da violência urbana.
- Devemos fazer algo, o medo nos encurrala cada vez mais, dizia Tão.
- Mas, o quê, meu amigo? Eu acredito que das autoridades não devemos esperar muito mais do que supostamente nos dão, retrucava Titote.
- Pois aí é que está a raiz de todo o caso, asseverava Tão, num arroubo de entusiasmo, - Nós é que precisamos da solução dos problemas, e ela reside em nós mesmos.
- Como pensa o amigo em tal solução? Acaso tem alguma fórmula mágica?
- Mágica, não, trata-se de uma fórmula real e objetiva, a de uma sociedade justa e igualitária, fazendo cada um a sua parte, trabalhando todos em benefício do todo, onde tudo seria repartido em partes iguais, onde não haveria preguiça nem má vontade, sob uma direção segura, - como atuam as abelhas, entende? Assumir nossas responsabilidades, sem devaneios, perante a grande sociedade e, se todos assim agissem, seria ideal, né? Já pensou numa cidade assim?
- Acho você um grande sonhador, Tão, parece até um poeta. Vamos carregar os ferros, porque temos ainda muito trabalho pela frente. Por enquanto, acho que essa parte é a que podemos fazer: levar os ferros.
- Ok, amigão, mas um dia chegaremos lá.
No dia seguinte, na serralheria, após o crepúsculo, são apresentados a um novo funcionário, de nome Só.
Trocam rapidamente idéias para melhor se conhecerem, sentem reciprocidade de pensamentos. Ficam felizes por ter como novo companheiro uma pessoa de ideais parecidos com os deles, como alguém que pareciam ter conhecido em outras eras.
Titote, Tão e Só se tornaram bons amigos e colegas de trabalho. Tinham muitos pontos em comum, como a origem humilde, o pendor para as digressões filosóficas, embora algumas diferenças naturais. Falam de seus pensamentos, destacam a problemática das drogas, em que cada um relata um caso trágico de que foram testemunha, lamentam, apontam soluções, comentam sobre os paradoxos do mundo moderno, se aprimoram em suas funções e logo o novo companheiro angaria a simpatia de todos naquela modesta oficina.

II

A notícia correu célere. O patrão fora vítima de assalto. Era dia de pagamento. Os ladrões levaram tudo, até mesmo a vida do patrão, juntamente com um sobrinho seu, rapaz de 15 anos incompletos e cheio de vida, que tentou reagir ao assalto e proteger o tio; morreram quase abraçados. Diziam que era promissor jogador de futebol. Mais um caso para as estatísticas, com seus frios números.
Fechou-se a serralheria, com a viúva chorosa indo para o interior, para a casa dos pais, de onde pensava que nunca deveria ter saído. Não tinham filhos.
Os três amigos, sem emprego e sem dinheiro, partiram à cata de nova ocupação, pois as contas não esperam. Dias de procura. Um vidraceiro da região, condoído da situação do trio, e precisado de mão-de-obra barata, os admite; sorte deles, emprego não cai do céu.
Mãos calejadas, acostumadas à dureza férrea da serralheria, encaravam eles agora a função nova e delicada da lida com o vidro. Cortaram as mãos várias vezes. Estilhaços que esvoaçavam a esmo, em não poucas ocasiões, quase lhes feriram os olhos, o que os levaria, destarte, a ver a vida sob outros ângulos. Aprenderam a fabricar espelhos, box para banheiro, vidraças.
Tão, em sua introspecção, muitas vezes mirava sua imagem fragmentada em lascas de espelho caídas ao chão e pensava, lobrigando talvez um futuro remoto e incerto:
- E se fosse eu um governante, faria algo melhor pelo povo? Bobagem, deixa pra lá.
Titote, por sua vez, prosseguindo em sua vida taciturna, sistemática, em cismar sobre as aleivosias do mundo, com suas dissimulações, frivolidades, invejas e torpezas, debalde, até, acalentara a esperança de um modelo a inspirar-se. Seus gatos são seus maiores confidentes. Seu remanescente pedaço de cortiço continua o mesmo. Os caminhos seguem iguais. Sua sofrida vida segue igual. Nesta altura dos fatos, até pensava em encarar o temido casamento, ora veja! Havia mais coisas entre a vã filosofia e sua personalidade do que poderia supor.

Tempos depois, num de seus muitos diálogos com os amigos, no horário da refeição do meio dia, disse Só, para surpresa e aprovação dos interlocutores, como a rematar:
- É, meus amigos, pelas circunstâncias atuais, e diante de tudo o que vimos comentando e observando, me atrevo a dizer que o espelho de nossa realidade é, infelizmente, o medo.
E é só.




Álvaro César de Araújo

terça-feira, 24 de novembro de 2009