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sexta-feira, 29 de agosto de 2014

A morte de Sócrates

A morte de Sócrates

Alceu Amoroso Lima

Introdução de Alceu Amoroso Lima ao livro Apologia de Sócrates, de Platão (Ediouro Publicações S.A)

Eis como, na palavra de um dos grandes biógrafos de Platão, se apresentam os fatos, em sua nudez objetiva, - "kahl und tot" - que cercaram a morte de Sócrates, essa morte que vem atravessando os séculos, como um dos grandes momentos da história da humanidade e representa como que uma prefiguração da morte de Cristo no Calvário.

·         Durante o inverno de 400/399 (a.C.) apresentou Meleto ao rei de Atenas uma queixa contra Sócrates. Anito e Lícon a subscreviam. Meleto era um jovem, pertencente a uma família de poetas e havia, pouco antes, feito representar uma Edipédia. Era poeta de pequeno vulto e .queria chamar a atenção sobre a sua pessoa. Os dois outros estavam metidos na vida pública. Lícon tinha tido, anteriormente, relações com Sócrates. Seu filho Antólico se tinha tornado um atleta conhecido e havia perdido a vida em um golpe da guarnição espartana durante a ocupação, o que provocara grande emoção. Havia, no caso, qualquer ressentimento pessoal (do pai contra Sócrates) que não podemos bem explicar. Anito era um dos chefes da democracia moderada dominante. Sua participação dava à queixa o seu maior peso. Sócrates era acusado de recusar o culto devido aos deuses do Estado, introduzindo entidades demoníacas, com isso pervertendo a mocidade e levando-a a cometer os mesmos crimes (de ateísmo contra os deuses oficiais), pois só assim ficaria o crime sob a jurisdição do rei, a quem competia a defesa da religião do Estado. O rei recebeu a queixa, dirigiu o inquérito e reuniu um tribunal de 501 jurados, que poderia condenar o réu pela maioria de 60 vozes. Como pena, após acusação da promotoria, foi votada a de morte, por grande maioria. Um julgamento do povo soberano e infalível, que os juízes representavam, era imediatamente posto em execução. Não havia recurso a qualquer instância superior. Sócrates foi logo levado à prisão pelos executores da sentença e posto a ferros para evitar a fuga. Seu amigo Críton apresentou garantias de que o condenado não procuraria fugir, provavelmente com o fito de obter alguma atenuação de tratamento, na prisão, para que o acusado pudesse ainda conversar com seus amigos. Adiou-se inesperadamente a execução da sentença. Dias antes se preparava para partir para Delfos o navio sagrado, que outrora levara Teseu a Creta, para uma peregrinação ao santuário de Apolo. Todo ano, nessa época, partia um navio para Delfos, com uma embaixada, para festejar o deus, que durante o inverno se ausentava para a Lícia. Nesse ano recaiu a festa no mês que anuncia a primavera, "mês sagrado" para os habitantes de Delfos, que correspondia ao "mês das flores" dos atenienses, o segundo depois do solstício do inverno. Nesse mês o mar não era ainda navegável. Daí o adiamento da partida e da volta do navio sagrado. Era tradição, porém, que durante esse período nenhuma sentença de morte podia ser executada. Dessa vez o lapso de tempo foi particularmente longo. Na tarde, porém, do dia em que o navio sagrado voltou ao porto, Sócrates bebeu a cicuta. São esses os fatos em sua plena nudez. (N. Von Willamovitz-Moellendorf - Platon. 1920 vol. I, pág. 155.)
Dos acusadores de Sócrates, dois morreram tempos depois, lapidados pela multidão, como caluniadores: Meleto e Anito. Quanto a Lícon, desapareceu da história, como os outros também. Graças à glória de sua vítima é que seus nomes ainda são relembrados pela posteridade.
Por ocasião da morte de Sócrates, Platão estava doente. Não pôde participar das conversas do mestre com os discípulos, aproveitando o atraso da execução da sentença, durante o qual Sócrates fazia versos sobre as fábulas de Esopo ou recusava a Críton a fuga por este oferecida, possivelmente com a própria complacência das autoridades públicas, que começavam provavelmente a reconhecer a fatal injustiça que os jurados haviam cometido, graças às intrigas dos acusadores.
Platão não pôde tampouco, acompanhar a Críton, Fédon, Apolidoro, Cebes e Símias - os cinco amigos e discípulos fiéis que participaram do memorável encontro do último dia de Sócrates, cujo resultado Fédon, depois da morte do mestre, foi contar a Echécatres e este referiu a Platão, que por sua vez o imortalizou no diálogo a que deu o nome de Fédon.
Toda obra de Platão está penetrada pelos ensinamentos de Sócrates, a tal ponto que nenhum comentador conseguiu distinguir nela o que pertence ao discípulo e o que proveio do mestre. O que se sabe, apenas, é que foi em seguida ao episódio relatado pelo próprio Sócrates, em seu Discurso aos Juízes, durante o regime dos 30 Tiranos e sobretudo após a sua morte, que Platão "se converteu", como diz Burnett, "levantando-se um novo homem da cama em que jazia doente. Não seria o caso único de um homem chamado a ser um apóstolo depois da morte do seu Mestre", aludindo evidentemente, o intérprete moderno, ao caso de S. Paulo após a morte de Cristo (cf. A. Diës - Autour de Platon, 1927, pág. 134, nota I).
As duas grandes acusações contra Sócrates, que levaram a maioria dos 501 a condená-lo à morte, foram - atentar contra a religião do Estado e corromper a mocidade: ateísmo e subversão.
Foi fácil a Sócrates, na sua defesa, destruir completamente tanto uma como outra acusação, como se vê de suas palavras perante o Aerópago. Longe de ser um ateu, mostra Sócrates que foi a voz do oráculo de Delfos que sempre o guiou. Isto é, nunca se considerou como sendo infalível. Ao contrário, o que o oráculo lhe ensinara é que "toda a sabedoria humana não valia grande coisa e mesmo não valia nada". E não foi outra a lição socrática. Longe de ser a de um racionalista, era a voz da humildade e do reconhecimento de que "há mais coisas debaixo do Sol do que a nossa pobre razão pode compreender", como 23 séculos mais tarde o iria exprimir de novo um dos poetas supremos da humanidade.
Meleto, o poetastro, não teve o que responder, quando Sócrates pulverizou sua acusação de ateísmo, porque realmente não era verdadeira. Verdade apenas é que Sócrates condenava o politeísmo oficial, a religião de Estado, que obrigava a um conformismo especulativo incompatível com a dignidade humana e com a liberdade de consciência. Quando Sócrates introduziu "demônios", em sua maiêutica, não estava tampouco pregando qualquer forma de demonismo espiritista. Seus demônios são "filhos dos deuses e das ninfas ou mesmo dos simples mortais", isto é, representavam as próprias forças da natureza que receberam dos "deuses", isto é, do mistério sobrenatural, aquela autonomia que permite à inteligência humana penetrá-los e à técnica subjugá-los. A filosofia socrática não era um ateísmo, pois considerava que as raízes do universo sensível estavam acima e fora desse universo, e Platão sistematizou essa doutrinação em sua teoria das Idéias e da Divindade suprema. Mas era, isso sim, um antiestatismo, isto é, uma condenação da autocracia humana que se servia dos deuses para impor aos homens uma escravidão política e moral, pior do que a escravidão puramente social. Esse estatismo, para Sócrates, tanto podia ser democrático como oligárquico. Contra os 30 Tiranos fora ele a única voz no Pritaneu que ousou erguer-se contra um decreto injusto da ditadura. E foi morrer vítima de um governo "democrático" e até mesmo da facção "moderada" da democracia, como o prova Willamovitz-Moellendorf, chamando a atenção para o fato de que só "alguns anos depois (da morte de Sócrates) é que os democratas radicais subiram ao poder" (op. cit. pág. 157). O fanatismo, "democrático" ou "ditatorial", é que é o inimigo da dignidade humana e da liberdade de consciência que Sócrates representa. Não era, pois, uma questão de regime, embora o antidemocratismo de Platão atribuísse a morte de Sócrates à "teatrocracia", que a democracia alimentara.
"Foi assim que o governo de Atenas passou de aristocrático a teatrocrático." (Platão.) A teatrocracia ateniense teve por efeito liberar todos os cidadãos ("e a desordem passando do teatro a tudo mais") de todo o respeito para com os magistrados, os superiores e os melhores, passando daí "ao desprezo pelo pátrio poder e pelos velhos", ao "desrespeito pelas leis", à apostasia "de todas as promessas, dos juramentos, dos deuses, imitando e renovando a audácia dos Titãs". Tudo isso estava em germe na teatrocracia, ou pelo menos a teatrocracia contribuiu, largamente, para isso. Em suma, foi a teatrocracia que matou Sócrates (Émile Faguet - Pour Qu'on Lise Platon, 1905, pág. 57).
Platão, nessa interpretação bastante aleatória de Faguet, aproveitava-se da morte de Sócrates como argumento em favor de sua República autocrática e de sua animosidade contra a democracia, ou antes contra a demagogia. Pois, na realidade, o que hoje chamamos democracia era o que os gregos, desde Aristóteles ao menos, chamavam de politéia, reservando o nome democracia ao que hoje chamamos demagogia.
Na realidade, Sócrates não morria por um regime político, mas por um princípio mais alto do que todos os regimes - o da dignidade humana. O que ele não tolerava era a opressão do pensamento, fosse da Multidão, fosse do Estado, fosse em nome dos deuses, fosse em nome da onipotência da Razão, da Violência ou do Número. A maioria que votou sua morte praticava uma injustiça igual à que havia praticado o regime ditatorial oligárquico, contra o qual sua voz solitária no Pritaneu é que estava com a razão, com a verdade e com a justiça.
Por elas é que Sócrates enfrentou a morte com a mesma serenidade com que passara a vida discutindo livremente com os cidadãos de Atenas. Se é verdade, como diz Faguet, que "Platão tinha ódio aos atenienses", como tinha "ódio à democracia", nesse ponto o platonismo nada tinha de socrático. Sócrates nunca sonhou em organizar uma República que pudesse, pela rigidez de suas leis, como pretendeu Platão fazê-lo, dar a felicidade aos cidadãos. Pelo contrário, como nos diz Sócrates no seu imortal Discurso aos Juízes, sempre, "desde criança" uma "voz interior" o aconselhou a não se meter na vida política. Não era esta a sua vocação. "Se o tivesse feito há muito que estaria morto." Não era uma lição de escapismo, mas de sabedoria. Cada um no seu lugar. E o lugar de Sócrates era argumentar com os cidadãos, levá-los a pensar, pensar com eles e não entrar na ação política, para governá-los ou mesmo para elaborar as leis que os deviam tornar felizes, como Platão queria que os "filósofos" fizessem e em vão o tentou junto aos tiranos... Por aí se vê que nem todo platonismo é socratismo.
A morte de Sócrates era pela liberdade e não pela autoridade. Era esta, e no caso a autoridade de um regime democrático, que praticava contra ele, e contra a consciência humana, uma trágica injustiça. Contra isso é que ele se revolta, não por atos mas por palavras, não pela violência, mas pela serenidade, não pela ação, nem pela paixão, mas pela razão. Mais do que pela razão, pela sabedoria, mestra da razão. E mais do que pela sabedoria humana, "humana demais", como diria Nietzsche, pela sabedoria sobre-humana, divina, oracular. Ou como dizemos nós cristãos, "gratuita", inspirada pela graça Divina.
Nesse sentido é que Sócrates foi uma prefiguração de Cristo. Sua morte, como a de Cristo, foi um protesto contra todas as tiranias, de César ou da Multidão, dos teocratas, dos aristocratas, ou dos democratas. Só há uma cracia autêntica - a cracia Divina, a cracia do Bem, da Verdade, da Justiça, do Amor, aquela que Sócrates viveu e seguiu pela boca da Pítia de Delfos. E que Cristo viveu e seguiu pela boca do Pai. A mais alta voz do Paganismo se antecipava, como um profeta desconhecido, à mais alta voz do Cristianismo. Cristo, Verbo de Deus, vinha ser, humanamente falando, a realização não apenas da voz dos Profetas, mas dessas vozes humanas, como a de Sócrates ou a de Virgílio, que do fundo do helenismo ou da latinidade, tinham como que um pressentimento obscuro daquilo que do fundo da Raça eleita, os Elias e Isaías, Ezequiéis e Jeremias anunciavam.
A importância da morte de Sócrates e da sua Apologia, que Platão exprimiu para todos os séculos, como poeta e como filósofo, tanto na própria Apologia, como no Críton ou no Fédon, transcendem, pois, de muito, o próprio mundo helênico, ou o da cultura por ele transmitido à posteridade.
Sócrates - enfrentando a morte, com aquela serenidade incomparável e fazendo um testamento de sabedoria que só se aproxima daquele que o Apóstolo S. João nos conservou, ditado pelo próprio Cristo, ao enfrentar também a morte, depois da Ceia - deixou para toda a humanidade, ocidental e oriental, setentrional ou meridional, a todas as raças e a todos os tempos, uma lição insuperável de grandeza humana e de sublime sabedoria sobre-humana...

Nunca a dignidade do homem, a liberdade de consciência, a defesa da verdade, da justiça, da virtude, a serenidade perante a morte, a humildade de espírito e a grandeza de alma, a compreensão e a fortaleza de ânimo, a coragem sem jactância - nunca um pensamento tão alto, uma lição tão profunda, foi dada por um homem aos homens em termos tão perfeitamente belos. Só mesmo a divindade de Cristo poderia transcender a humanidade de Sócrates. E sua morte ainda teve, como a de Tomás Morus, uma nota final extremamente humana: aquela ironia com que recomendou ao discípulo querido que não se esquecesse, como determinava a superstição, de sacrificar um galo a Esculápio, a esse deus da medicina e da terapêutica, que sabia preparar venenos tão sutis, como essa Cicuta, com que ele ingressava tranqüilamente não na morte mas na eternidade! Não com lágrimas nos olhos, mas com um sorriso nos lábios. Condenando, para sempre, na pessoa dos seus algozes, a arrogância dos fanáticos, a violência dos medíocres e a implacabilidade dos primários.