A morte de Sócrates
Alceu
Amoroso Lima
Introdução de Alceu Amoroso Lima ao livro Apologia de Sócrates, de Platão (Ediouro Publicações S.A)
Eis
como, na palavra de um dos grandes biógrafos de Platão, se apresentam os fatos,
em sua nudez objetiva, - "kahl und tot" - que cercaram a morte de
Sócrates, essa morte que vem atravessando os séculos, como um dos grandes
momentos da história da humanidade e representa como que uma prefiguração da
morte de Cristo no Calvário.
·
Durante o inverno de 400/399 (a.C.)
apresentou Meleto ao rei de Atenas uma queixa contra Sócrates. Anito e Lícon a
subscreviam. Meleto era um jovem, pertencente a uma família de poetas e havia,
pouco antes, feito representar uma Edipédia. Era poeta de pequeno vulto e .queria chamar a atenção sobre a sua
pessoa. Os dois outros estavam metidos na vida pública. Lícon tinha tido,
anteriormente, relações com Sócrates. Seu filho Antólico se tinha tornado um
atleta conhecido e havia perdido a vida em um golpe da guarnição espartana
durante a ocupação, o que provocara grande emoção. Havia, no caso, qualquer
ressentimento pessoal (do pai contra Sócrates) que não podemos bem explicar.
Anito era um dos chefes da democracia moderada dominante. Sua participação dava
à queixa o seu maior peso. Sócrates era acusado de recusar o culto devido aos
deuses do Estado, introduzindo entidades demoníacas, com isso pervertendo a
mocidade e levando-a a cometer os mesmos crimes (de ateísmo contra os deuses
oficiais), pois só assim ficaria o crime sob a jurisdição do rei, a quem
competia a defesa da religião do Estado. O rei recebeu a queixa, dirigiu o
inquérito e reuniu um tribunal de 501 jurados, que poderia condenar o réu pela
maioria de 60 vozes. Como pena, após acusação da promotoria, foi votada a de
morte, por grande maioria. Um julgamento do povo soberano e infalível, que os
juízes representavam, era imediatamente posto em execução. Não havia recurso a
qualquer instância superior. Sócrates foi logo levado à prisão pelos executores
da sentença e posto a ferros para evitar a fuga. Seu amigo Críton apresentou
garantias de que o condenado não procuraria fugir, provavelmente com o fito de
obter alguma atenuação de tratamento, na prisão, para que o acusado pudesse
ainda conversar com seus amigos. Adiou-se inesperadamente a execução da
sentença. Dias antes se preparava para partir para Delfos o navio sagrado, que
outrora levara Teseu a Creta, para uma peregrinação ao santuário de Apolo. Todo
ano, nessa época, partia um navio para Delfos, com uma embaixada, para festejar
o deus, que durante o inverno se ausentava para a Lícia. Nesse ano recaiu a
festa no mês que anuncia a primavera, "mês sagrado" para os
habitantes de Delfos, que correspondia ao "mês das flores" dos
atenienses, o segundo depois do solstício do inverno. Nesse mês o mar não era
ainda navegável. Daí o adiamento da partida e da volta do navio sagrado. Era
tradição, porém, que durante esse período nenhuma sentença de morte podia ser
executada. Dessa vez o lapso de tempo foi particularmente longo. Na tarde,
porém, do dia em que o navio sagrado voltou ao porto, Sócrates bebeu a cicuta.
São esses os fatos em sua plena nudez. (N. Von Willamovitz-Moellendorf -
Platon. 1920 vol. I, pág. 155.)
Dos
acusadores de Sócrates, dois morreram tempos depois, lapidados pela multidão,
como caluniadores: Meleto e Anito. Quanto a Lícon, desapareceu da história,
como os outros também. Graças à glória de sua vítima é que seus nomes ainda são
relembrados pela posteridade.
Por
ocasião da morte de Sócrates, Platão estava doente. Não pôde participar das
conversas do mestre com os discípulos, aproveitando o atraso da execução da
sentença, durante o qual Sócrates fazia versos sobre as fábulas de Esopo ou
recusava a Críton a fuga por este oferecida, possivelmente com a própria
complacência das autoridades públicas, que começavam provavelmente a reconhecer
a fatal injustiça que os jurados haviam cometido, graças às intrigas dos
acusadores.
Platão
não pôde tampouco, acompanhar a Críton, Fédon, Apolidoro, Cebes e Símias - os
cinco amigos e discípulos fiéis que participaram do memorável encontro do
último dia de Sócrates, cujo resultado Fédon, depois da morte do mestre, foi
contar a Echécatres e este referiu a Platão, que por sua vez o imortalizou no
diálogo a que deu o nome de Fédon.
Toda
obra de Platão está penetrada pelos ensinamentos de Sócrates, a tal ponto que
nenhum comentador conseguiu distinguir nela o que pertence ao discípulo e o que
proveio do mestre. O que se sabe, apenas, é que foi em seguida ao episódio
relatado pelo próprio Sócrates, em seu Discurso aos Juízes, durante o regime
dos 30 Tiranos e sobretudo após a sua morte, que Platão "se
converteu", como diz Burnett, "levantando-se um novo homem da cama em
que jazia doente. Não seria o caso único de um homem chamado a ser um apóstolo
depois da morte do seu Mestre", aludindo evidentemente, o intérprete
moderno, ao caso de S. Paulo após a morte de Cristo (cf. A. Diës - Autour de
Platon, 1927, pág. 134, nota I).
As
duas grandes acusações contra Sócrates, que levaram a maioria dos 501 a
condená-lo à morte, foram - atentar contra a religião do Estado e corromper a
mocidade: ateísmo e subversão.
Foi
fácil a Sócrates, na sua defesa, destruir completamente tanto uma como outra
acusação, como se vê de suas palavras perante o Aerópago. Longe de ser um ateu,
mostra Sócrates que foi a voz do oráculo de Delfos que sempre o guiou. Isto é,
nunca se considerou como sendo infalível. Ao contrário, o que o oráculo lhe
ensinara é que "toda a sabedoria humana não valia grande coisa e mesmo não
valia nada". E não foi outra a lição socrática. Longe de ser a de um
racionalista, era a voz da humildade e do reconhecimento de que "há mais
coisas debaixo do Sol do que a nossa pobre razão pode compreender", como
23 séculos mais tarde o iria exprimir de novo um dos poetas supremos da
humanidade.
Meleto,
o poetastro, não teve o que responder, quando Sócrates pulverizou sua acusação
de ateísmo, porque realmente não era verdadeira. Verdade apenas é que Sócrates
condenava o politeísmo oficial, a religião de Estado, que obrigava a um conformismo
especulativo incompatível com a dignidade humana e com a liberdade de
consciência. Quando Sócrates introduziu "demônios", em sua maiêutica,
não estava tampouco pregando qualquer forma de demonismo espiritista. Seus
demônios são "filhos dos deuses e das ninfas ou mesmo dos simples
mortais", isto é, representavam as próprias forças da natureza que
receberam dos "deuses", isto é, do mistério sobrenatural, aquela
autonomia que permite à inteligência humana penetrá-los e à técnica subjugá-los.
A filosofia socrática não era um ateísmo, pois considerava que as raízes do
universo sensível estavam acima e fora desse universo, e Platão sistematizou
essa doutrinação em sua teoria das Idéias e da Divindade suprema. Mas era, isso
sim, um antiestatismo, isto é, uma condenação da autocracia humana que se
servia dos deuses para impor aos homens uma escravidão política e moral, pior
do que a escravidão puramente social. Esse estatismo, para Sócrates, tanto
podia ser democrático como oligárquico. Contra os 30 Tiranos fora ele a única
voz no Pritaneu que ousou erguer-se contra um decreto injusto da ditadura. E
foi morrer vítima de um governo "democrático" e até mesmo da facção
"moderada" da democracia, como o prova Willamovitz-Moellendorf,
chamando a atenção para o fato de que só "alguns anos depois (da morte de
Sócrates) é que os democratas radicais subiram ao poder" (op. cit. pág.
157). O fanatismo, "democrático" ou "ditatorial", é que é o
inimigo da dignidade humana e da liberdade de consciência que Sócrates representa.
Não era, pois, uma questão de regime, embora o antidemocratismo de Platão
atribuísse a morte de Sócrates à "teatrocracia", que a democracia
alimentara.
"Foi assim que o governo de Atenas
passou de aristocrático a teatrocrático." (Platão.) A teatrocracia
ateniense teve por efeito liberar todos os cidadãos ("e a desordem
passando do teatro a tudo mais") de todo o respeito para com os
magistrados, os superiores e os melhores, passando daí "ao desprezo pelo
pátrio poder e pelos velhos", ao "desrespeito pelas leis", à
apostasia "de todas as promessas, dos juramentos, dos deuses, imitando e
renovando a audácia dos Titãs". Tudo isso estava em germe na teatrocracia,
ou pelo menos a teatrocracia contribuiu, largamente, para isso. Em suma, foi a
teatrocracia que matou Sócrates (Émile Faguet - Pour Qu'on Lise Platon, 1905,
pág. 57).
Platão,
nessa interpretação bastante aleatória de Faguet, aproveitava-se da morte de
Sócrates como argumento em favor de sua República autocrática e de sua
animosidade contra a democracia, ou antes contra a demagogia. Pois, na
realidade, o que hoje chamamos democracia era o que os gregos, desde
Aristóteles ao menos, chamavam de politéia, reservando o nome democracia ao que
hoje chamamos demagogia.
Na
realidade, Sócrates não morria por um regime político, mas por um princípio
mais alto do que todos os regimes - o da dignidade humana. O que ele não
tolerava era a opressão do pensamento, fosse da Multidão, fosse do Estado,
fosse em nome dos deuses, fosse em nome da onipotência da Razão, da Violência
ou do Número. A maioria que votou sua morte praticava uma injustiça igual à que
havia praticado o regime ditatorial oligárquico, contra o qual sua voz
solitária no Pritaneu é que estava com a razão, com a verdade e com a justiça.
Por
elas é que Sócrates enfrentou a morte com a mesma serenidade com que passara a
vida discutindo livremente com os cidadãos de Atenas. Se é verdade, como diz
Faguet, que "Platão tinha ódio aos atenienses", como tinha "ódio
à democracia", nesse ponto o platonismo nada tinha de socrático. Sócrates
nunca sonhou em organizar uma República que pudesse, pela rigidez de suas leis,
como pretendeu Platão fazê-lo, dar a felicidade aos cidadãos. Pelo contrário,
como nos diz Sócrates no seu imortal Discurso aos Juízes, sempre, "desde criança"
uma "voz interior" o aconselhou a não se meter na vida política. Não
era esta a sua vocação. "Se o tivesse feito há muito que estaria
morto." Não era uma lição de escapismo, mas de sabedoria. Cada um no seu
lugar. E o lugar de Sócrates era argumentar com os cidadãos, levá-los a pensar,
pensar com eles e não entrar na ação política, para governá-los ou mesmo para
elaborar as leis que os deviam tornar felizes, como Platão queria que os
"filósofos" fizessem e em vão o tentou junto aos tiranos... Por aí se
vê que nem todo platonismo é socratismo.
A
morte de Sócrates era pela liberdade e não pela autoridade. Era esta, e no caso
a autoridade de um regime democrático, que praticava contra ele, e contra a
consciência humana, uma trágica injustiça. Contra isso é que ele se revolta,
não por atos mas por palavras, não pela violência, mas pela serenidade, não
pela ação, nem pela paixão, mas pela razão. Mais do que pela razão, pela
sabedoria, mestra da razão. E mais do que pela sabedoria humana, "humana
demais", como diria Nietzsche, pela sabedoria sobre-humana, divina,
oracular. Ou como dizemos nós cristãos, "gratuita", inspirada pela
graça Divina.
Nesse
sentido é que Sócrates foi uma prefiguração de Cristo. Sua morte, como a de
Cristo, foi um protesto contra todas as tiranias, de César ou da Multidão, dos
teocratas, dos aristocratas, ou dos democratas. Só há uma cracia autêntica - a
cracia Divina, a cracia do Bem, da Verdade, da Justiça, do Amor, aquela que
Sócrates viveu e seguiu pela boca da Pítia de Delfos. E que Cristo viveu e
seguiu pela boca do Pai. A mais alta voz do Paganismo se antecipava, como um
profeta desconhecido, à mais alta voz do Cristianismo. Cristo, Verbo de Deus,
vinha ser, humanamente falando, a realização não apenas da voz dos Profetas,
mas dessas vozes humanas, como a de Sócrates ou a de Virgílio, que do fundo do
helenismo ou da latinidade, tinham como que um pressentimento obscuro daquilo
que do fundo da Raça eleita, os Elias e Isaías, Ezequiéis e Jeremias
anunciavam.
A
importância da morte de Sócrates e da sua Apologia, que Platão exprimiu para
todos os séculos, como poeta e como filósofo, tanto na própria Apologia, como
no Críton ou no Fédon, transcendem, pois, de muito, o próprio mundo helênico,
ou o da cultura por ele transmitido à posteridade.
Sócrates
- enfrentando a morte, com aquela serenidade incomparável e fazendo um
testamento de sabedoria que só se aproxima daquele que o Apóstolo S. João nos
conservou, ditado pelo próprio Cristo, ao enfrentar também a morte, depois da
Ceia - deixou para toda a humanidade, ocidental e oriental, setentrional ou
meridional, a todas as raças e a todos os tempos, uma lição insuperável de
grandeza humana e de sublime sabedoria sobre-humana...
Nunca
a dignidade do homem, a liberdade de consciência, a defesa da verdade, da
justiça, da virtude, a serenidade perante a morte, a humildade de espírito e a
grandeza de alma, a compreensão e a fortaleza de ânimo, a coragem sem jactância
- nunca um pensamento tão alto, uma lição tão profunda, foi dada por um homem aos
homens em termos tão perfeitamente belos. Só mesmo a divindade de Cristo
poderia transcender a humanidade de Sócrates. E sua morte ainda teve, como a de
Tomás Morus, uma nota final extremamente humana: aquela ironia com que
recomendou ao discípulo querido que não se esquecesse, como determinava a
superstição, de sacrificar um galo a Esculápio, a esse deus da medicina e da
terapêutica, que sabia preparar venenos tão sutis, como essa Cicuta, com que
ele ingressava tranqüilamente não na morte mas na eternidade! Não com lágrimas
nos olhos, mas com um sorriso nos lábios. Condenando, para sempre, na pessoa
dos seus algozes, a arrogância dos fanáticos, a violência dos medíocres e a
implacabilidade dos primários.