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quinta-feira, 26 de novembro de 2009

VIDRO

VIDRO

I

Titote tem uma personalidade incrível. Daquelas que se pode afirmar cunhada na forja da experiência que só uma vida prenhe de labutas proporciona.
Morador da periferia da cidade grande, em um bairro violento, que tem presença constante nas páginas de noticiário policial dos jornais. Vive só, é um solteirão convicto, e, diversamente dos seus poucos conhecidos, leva uma vida caseira no que restou de um antigo cortiço de meia-água, reformado com suas próprias mãos, contando com parca, mas bem-vinda ajuda. Olha com altaneiro desprezo o mundo a sua volta, embora o inconfessável medo deste extramuros o faça levar esta vida quase de claustro. Impregna obsessivamente tudo que o cerca em sua modesta morada com seus arranjos, como no jardim bem cuidado, (coisa rara por lá), no seu jeito de lidar com os gatos que cria, com os quais trava diálogos ininteligíveis, como a exteriorizar o turbilhão de sensações que represa em seu íntimo, num afã de enxergar nos bichanos algo indefinível.
Mimetiza-se em seu habitat com os objetos, quinquilharias que traz e que recolhe ao longo de sua caminhada para o local de trabalho, uma serralheria, onde, com a pele crestada pelo sol e pela rude batalha do dia-a-dia, verga o ferro, usa o torno, une suas partes com o maçarico, transformando-o em grades e cercas para proteger os cidadãos de bem contra o que sua sociedade exclui.
Tão é seu único amigo, o conheceu na oficina, tem compleição física avantajada, quase rude, mas possui uma sensibilidade que se revela através do olhar tranquilo e sereno. É dado a ilações filosóficas, mesmo tendo cursado apenas o ensino médio. No trajeto das entregas e montagens que faziam, de vez em quando sobrava um tempinho para trocarem idéias sobre a vida, com seus problemas e filigranas de todos os matizes, sobretudo acerca da violência urbana.
- Devemos fazer algo, o medo nos encurrala cada vez mais, dizia Tão.
- Mas, o quê, meu amigo? Eu acredito que das autoridades não devemos esperar muito mais do que supostamente nos dão, retrucava Titote.
- Pois aí é que está a raiz de todo o caso, asseverava Tão, num arroubo de entusiasmo, - Nós é que precisamos da solução dos problemas, e ela reside em nós mesmos.
- Como pensa o amigo em tal solução? Acaso tem alguma fórmula mágica?
- Mágica, não, trata-se de uma fórmula real e objetiva, a de uma sociedade justa e igualitária, fazendo cada um a sua parte, trabalhando todos em benefício do todo, onde tudo seria repartido em partes iguais, onde não haveria preguiça nem má vontade, sob uma direção segura, - como atuam as abelhas, entende? Assumir nossas responsabilidades, sem devaneios, perante a grande sociedade e, se todos assim agissem, seria ideal, né? Já pensou numa cidade assim?
- Acho você um grande sonhador, Tão, parece até um poeta. Vamos carregar os ferros, porque temos ainda muito trabalho pela frente. Por enquanto, acho que essa parte é a que podemos fazer: levar os ferros.
- Ok, amigão, mas um dia chegaremos lá.
No dia seguinte, na serralheria, após o crepúsculo, são apresentados a um novo funcionário, de nome Só.
Trocam rapidamente idéias para melhor se conhecerem, sentem reciprocidade de pensamentos. Ficam felizes por ter como novo companheiro uma pessoa de ideais parecidos com os deles, como alguém que pareciam ter conhecido em outras eras.
Titote, Tão e Só se tornaram bons amigos e colegas de trabalho. Tinham muitos pontos em comum, como a origem humilde, o pendor para as digressões filosóficas, embora algumas diferenças naturais. Falam de seus pensamentos, destacam a problemática das drogas, em que cada um relata um caso trágico de que foram testemunha, lamentam, apontam soluções, comentam sobre os paradoxos do mundo moderno, se aprimoram em suas funções e logo o novo companheiro angaria a simpatia de todos naquela modesta oficina.

II

A notícia correu célere. O patrão fora vítima de assalto. Era dia de pagamento. Os ladrões levaram tudo, até mesmo a vida do patrão, juntamente com um sobrinho seu, rapaz de 15 anos incompletos e cheio de vida, que tentou reagir ao assalto e proteger o tio; morreram quase abraçados. Diziam que era promissor jogador de futebol. Mais um caso para as estatísticas, com seus frios números.
Fechou-se a serralheria, com a viúva chorosa indo para o interior, para a casa dos pais, de onde pensava que nunca deveria ter saído. Não tinham filhos.
Os três amigos, sem emprego e sem dinheiro, partiram à cata de nova ocupação, pois as contas não esperam. Dias de procura. Um vidraceiro da região, condoído da situação do trio, e precisado de mão-de-obra barata, os admite; sorte deles, emprego não cai do céu.
Mãos calejadas, acostumadas à dureza férrea da serralheria, encaravam eles agora a função nova e delicada da lida com o vidro. Cortaram as mãos várias vezes. Estilhaços que esvoaçavam a esmo, em não poucas ocasiões, quase lhes feriram os olhos, o que os levaria, destarte, a ver a vida sob outros ângulos. Aprenderam a fabricar espelhos, box para banheiro, vidraças.
Tão, em sua introspecção, muitas vezes mirava sua imagem fragmentada em lascas de espelho caídas ao chão e pensava, lobrigando talvez um futuro remoto e incerto:
- E se fosse eu um governante, faria algo melhor pelo povo? Bobagem, deixa pra lá.
Titote, por sua vez, prosseguindo em sua vida taciturna, sistemática, em cismar sobre as aleivosias do mundo, com suas dissimulações, frivolidades, invejas e torpezas, debalde, até, acalentara a esperança de um modelo a inspirar-se. Seus gatos são seus maiores confidentes. Seu remanescente pedaço de cortiço continua o mesmo. Os caminhos seguem iguais. Sua sofrida vida segue igual. Nesta altura dos fatos, até pensava em encarar o temido casamento, ora veja! Havia mais coisas entre a vã filosofia e sua personalidade do que poderia supor.

Tempos depois, num de seus muitos diálogos com os amigos, no horário da refeição do meio dia, disse Só, para surpresa e aprovação dos interlocutores, como a rematar:
- É, meus amigos, pelas circunstâncias atuais, e diante de tudo o que vimos comentando e observando, me atrevo a dizer que o espelho de nossa realidade é, infelizmente, o medo.
E é só.




Álvaro César de Araújo

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